quarta-feira, 27 de abril de 2011

Papai, por favor, desliga o rádio!


Eu aprendi a torcer pelo Fluminense em 1969. Tinha, à época, nove anos. Meu querido pai, Douglas, ouvia os jogos de futebol em um rádio “transglobe”, de 12 faixas.
Ouvíamos, nas tardes de domingo, a rádio Globo, acompanhando Valdir Amaral, Jorge Cury, João Saldanha, Luís Mendes, Mário Viana, entre outros.
Em um desses dias, acompanhei um Fla X Flu pela final do Campeonato Carioca de 1969. Ganhamos de 3x2, com o último gol do centroavante Flávio.
Apaixonei-me  pelo time campeão: Félix, Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antonio; Denílson e Didi; Cafuringa, Samarone, Flávio e Lula. O atacante Cláudio Garcia entrou jogando a final, lembrar-me-ia o jornalista José Trajano (ESPN), numa tarde de bate-papo em Johanesburgo, durante a Copa da África do Sul.
Trinta e nove anos depois eu vivi um dos momentos mais marcantes da minha vida.
Estava lá, no Maracanã, dia 02/07/2008, não mais aquela criança de nove anos do famoso Fla X Flu, mas um homem de 48 anos, com os mais genuínos sentimentos infantis, graças a Deus! O jogo do século para o Fluminense: final da Libertadores 2008 contra a LDU, do Equador.
O dia transcorreu como se houvesse algo extraordinário para acontecer naquela noite.
O movimentado centro, lá pela altura da Avenida Presidente Vargas, parecia viver um frenesi diferente. Não era o habitual, da pressa e do trânsito estressante de todos os dias. Era diferente. As pessoas estavam tolerantes, passando um dia que não as faria reclamar, pois à noite algo muito bom estaria para acontecer. Acreditem, até os flamenguistas deviam estar ligeiramente ansiosos.
Nesse clima, peguei um táxi para ir ao Maracanã às sete da noite. O motorista, rubro-negro confesso, revelou que aquela seria sua última corrida. Iria para casa, no Rio Comprido, assistir ao jogo e evitar uma noite de engarrafamentos e disse, timidamente, que não ia torcer contra o Flu.
No caminho, pensei naquela criança do Fla X Flu de 69, tão cheia de fantasias e sonhos.
Eu estava cheio de sonhos, de alegria, de expectativa do mesmo modo quando me preparava para ouvir os jogos.
A demora em chegar ao estádio não me importava. Havia tempo. Aproveitava para ver os carros que desfilavam cheios de torcedores satisfeitos. Ninguém reclamava. Uns davam a passagem, outros faziam sinal de vitória. Nas janelas dos prédios, as bandeiras do Flu pareciam saudar e aplaudir a romaria.
Quando entrei no Maracanã, em meio a uma multidão de homens e mulheres que pareciam ser de uma única família com milhares de casais, pais, filhos, mães, noras, netos, avós e crianças de nove anos, disse para mim mesmo: Meu Deus, só há um time no mundo. Tudo e todos são tricolores.
O espetáculo de alegria, criatividade, cores, fogos, energia  e confiança que antecedeu ao jogo faria aquela criança do Fla X Flu entrar em êxtase. Mas, quem sentiu uma força e emoção diferentes, inesquecíveis naquela noite, foi um marmanjo, como se costuma dizer.
Não cabia em mim mesmo por estar ali, torcedor de uniforme, testemunha ocular de uma noite que poderia não se repetir  tão cedo  e na qual  todos só tinham uma única paixão.
O jogo? Ah, o jogo não importava muito. A noite sim, essa importava.
Como fazer o tempo parar e não sairmos mais daquele estádio? Que mágica  a criança de nove anos teria que fazer para a vida transcorrer apenas ali com as cores, os cantos da torcida, os fogos e a névoa de pó de arroz?
Foi o que pensei: será que esta noite precisa terminar?
Mas...
Após o mais ensurdecedor e agonizante silêncio que sucedeu à perda do último pênalti, ressurgiu uma criança  apavorada.
Onde estava meu pai naquele momento para desligar o rádio?
O que fazer agora? Para onde ir? Como  fazer o tempo voltar e  aquelas bolas entrarem no gol, uma cobrança de pênalti atrás da outra?
Meu Deus, o que houve? Não era este o final combinado.
Pelas ruas que cercam o Maracanã vi grupos de pessoas, famílias inteiras sentadas, silenciosas, algumas crianças de nove anos chorando e pedindo ajuda a seus pais. Vi casais abraçados na tristeza, olhares perdidos, vi sonâmbulos em busca da esquina que lhes indicassem o caminho de volta, vi o nada, não vi nada.
Por um instante, eu também não sabia como voltar para casa, verdadeiramente.
Atônito, esqueci o caminho para a Rua Bom Pastor onde estava hospedado. Fui junto com meus primos Rafael e Tiago, e o meu querido amigo Rodrigo que veio de São Luis com sua bandeira de sempre, para um lado e para o outro. Estávamos perdidos. Não sabíamos o que fazer.
A cidade sumiu, não havia táxi, nem ônibus, nem metrô, só um vazio.
Na manhã seguinte à noite que não queria acabar, e talvez nunca acabasse, encontrei outros homens e mulheres sobreviventes. Estavam vestidos com a camisa tricolor na fila do check-in do Galeão.
Nós nos vimos com olhos que pareciam enxergar só para dentro, para nossas memórias daquela noite.
Mas aqueles torcedores, de repente, talvez pela resignação vestida de uniforme, moveram minhas emoções.
Estamos vivos! Olha o verde da esperança, uma das três cores. Olha o orgulho de carregar a bandeira para casa, de voltar ao avião para a uma viagem triste, mas que nos levará de volta à vida, aos sonhos, à magia de novos gols, à certeza de que o Fluminense é eterno e grande!
Grande, como foi em toda a Taça Libertadores, sempre a frente da tabela, com gols no último minuto, viradas históricas e comovendo o país com a campanha “Eu acredito”, que uniu torcedores em todo o Brasil.
Chega! Aquela noite ficava para trás. 
O mundo começava a fazer sentido de novo.
Camisas e bandeiras tricolores voltavam a encantar com a harmonia das “três cores que traduzem tradição”...
“Sou tricolor de coração, sou do clube tantas vezes campeão...”, lembrava-me o nosso hino.


*Compartilho este roteiro inesquecível e rabiscado originalmente em 03/07/2008, durante o voo do Rio para Brasília, estimulado que estou pela disputa da atual Libertadores.





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